Se você leu nosso primeiro artigo sobre o mito do equilíbrio, já sabe que essa obsessão moderna por ser “balanceado” pode estar te impedindo de conhecer quem você realmente é. Agora chegou a hora de ir mais fundo no buraco da toca do coelho: seus excessos não são bugs no seu sistema, são features revelando seus desejos mais autênticos.
Antes de você fechar essa aba com pressa (outro excesso, aliás — que tal observar essa compulsão por escapar de conteúdo que pode incomodar?), me acompanhe numa jornada investigativa. Vamos descobrir por que aquilo que mais te envergonha pode ser exatamente aquilo que mais precisa ser compreendido.
Spoiler: vai doer um pouco. Autoconhecimento real sempre dói.
O Que a Psicanálise Descobriu Sobre Seus “Vícios”
Freud fez uma descoberta perturbadora no final do século XIX: não existe comportamento aleatório. Todo excesso, toda compulsão, toda obsessão serve a um propósito psíquico específico. Não necessariamente um propósito consciente, mas um propósito.
Quando você passa três horas no Instagram em vez de fazer aquele projeto importante, não é “falta de disciplina”. Quando você come uma caixa inteira de brigadeiros depois de uma discussão, não é “falta de autocontrole”. Quando você sempre se apaixona por pessoas emocionalmente indisponíveis, não é “azar no amor”.
São sintomas. E sintomas, na linguagem psicanalítica, são soluções criativas do inconsciente para problemas que você ainda não consegue nomear.
A Matemática Secreta dos Excessos
Adam Phillips observa algo genial: nossos excessos seguem uma matemática emocional precisa. Eles aparecem sempre nos mesmos contextos, disparados pelos mesmos gatilhos, servindo às mesmas necessidades psíquicas.
Vou te dar alguns exemplos reais (com nomes mudados, obvio):
Marina, 34 anos, toda vez que está prestes a conseguir algo importante, sabota tudo com uma “cagada épica”. Resultado: continua se sentindo uma vítima incompreendida em vez de enfrentar a responsabilidade do sucesso.
Carlos, 28 anos, só consegue relaxar quando está completamente ocupado, cheio de projetos simultâneos. No momento que para, surge uma angústia insuportável. Descobriu que o excesso de atividade protegia ele de entrar em contato com uma tristeza profunda que não sabia como processar.
Ana, 42 anos, viciada em relacionamentos dramáticos. Sempre o cara errado, sempre sofrendo, sempre “aprendendo” com a experiência. O padrão? Intensidade emocional virou sinônimo de amor genuíno. Relacionamentos estáveis são “chatos”.
Percebe o padrão? Cada excesso é uma tentativa (fracassada, mas criativa) de resolver um conflito emocional não resolvido.
Por Que Você Sempre “Escolhe” os Mesmos Excessos
Aqui está uma verdade incômoda: você não desenvolve excessos aleatórios. É muito específico quais vícios você desenvolve e quais não.
Por que algumas pessoas viram workaholics e outras procrastinadoras? Por que alguns se tornam viciados em compras e outros em relacionamentos? Por que você é obsessivo com limpeza mas relaxado com pontualidade?
A resposta está nos seus conflitos fundamentais não resolvidos. E atenção: todo mundo tem alguns. Não é patologia, é condição humana.
Os Cinco Tipos Clássicos de Conflitos que Geram Excessos:
1. Conflito Controle vs. Entrega
- Excesso comum: Workaholic, microgestão, vício em planejamento
- Tradução: “Se eu controlar tudo, nada de ruim vai acontecer”
- Desejo oculto: Poder se entregar sem medo de ser abandonado
2. Conflito Conexão vs. Autonomia
- Excesso comum: Vício em relacionamentos ou evitação completa
- Tradução: “Preciso de pessoas” vs. “Pessoas me sufocam”
- Desejo oculto: Intimidade genuína sem perda de identidade
3. Conflito Reconhecimento vs. Autenticidade
- Excesso comum: Vício em aprovação, people pleasing
- Tradução: “Preciso ser amado” vs. “Preciso ser eu mesmo”
- Desejo oculto: Ser aceito exatamente como é
4. Conflito Segurança vs. Crescimento
- Excesso comum: Procrastinação, vício em comfort zone
- Tradução: “Mudança é perigosa” vs. “Estagnação é morte”
- Desejo oculto: Expandir sem perder estabilidade
5. Conflito Prazer vs. Responsabilidade
- Excesso comum: Vício em entretenimento, evitação de comprometimento
- Tradução: “A vida deve ser leve” vs. “A vida é séria”
- Desejo oculto: Leveza sem culpa, seriedade sem peso
O Paradoxo: Quanto Mais Você Luta, Mais Se Fortalecem
Aqui está onde a coisa fica interessante (e frustrante): a resistência alimenta aquilo que você resiste.
Sabe aquela famosa frase “não pense em um elefante rosa”? É impossível, né? Quanto mais você tenta não pensar, mais o elefante rosa fica vívido na sua mente.
Com excessos acontece a mesma coisa, mas amplificado. Quanto mais você luta contra um comportamento compulsivo, mais energia psíquica você dá para ele. É como tentar apagar fogo com gasolina.
Phillips explica que resistência é uma forma de reconhecimento. Quando você resiste a algo obsessivamente, está reconhecendo sua importância. Está dizendo para seu inconsciente: “Isso aqui é fundamental para mim.”
Por isso aquela pessoa que vive dizendo “eu odeio drama” sempre está metida em situações dramáticas. Por isso quem “nunca tem tempo” sempre encontra tempo para Netflix. Por isso quem “não liga para opinião dos outros” vive checando curtidas.
Reflexões Para Mastigar Esta Semana
Antes de você sair correndo para psicoo-analisar todos os seus comportamentos (que seria mais um excesso, a propósito), pensa comigo:
- Qual é o seu excesso mais recorrente? Aquele que aparece independente das suas tentativas de controlar?
- Em que contextos ele aparece mais? Quando você está estressado? Entediado? Sozinho? Com pessoas específicas?
- Se esse excesso pudesse falar, o que ele diria que precisa? Tente imaginar uma conversa com essa parte de você.
- Que necessidade legítima pode estar por trás? Por exemplo: se você procrastina, pode ser necessidade de autonomia. Se você é workaholic, pode ser necessidade de propósito.
- Como você poderia atender essa necessidade de forma mais consciente? Sem eliminar a necessidade, mas encontrando formas mais saudáveis.
O Próximo Nível da Jornada
Na próxima edição, vamos explorar como seus mecanismos de defesa – aquelas estratégias que você desenvolveu para se proteger – podem estar te traindo. Porque uma coisa é entender seus excessos, outra é perceber como você se defende (inconscientemente) de tudo que poderia te ajudar a crescer.
Spoiler: algumas das suas maiores qualidades podem ser suas maiores prisões. E isso vai fazer muito mais sentido quando você entender a diferença entre proteção e paralisia.
Até lá, pare de brigar com você mesmo. Comece a fazer perguntas melhores.
Disclaimer Profissional: Este artigo oferece reflexões baseadas em conceitos psicanalíticos para fins educacionais e de autoconhecimento. Não substitui terapia psicológica ou psicanalítica profissional. Se você está enfrentando comportamentos compulsivos que interferem significativamente na sua vida, procure ajuda de um profissional qualificado. Como psicanalista clínico, encorajo a busca por análise pessoal como ferramenta de autoconhecimento profundo.
Referências
PHILLIPS, Adam. On Balance. London: Hamish Hamilton, 2010. Farrar, Straus and Giroux.
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
